Terça-feira, 6 de Fevereiro de 2007
A proposta agora lançada por movimentos e personalidades que lutam contra a despenalização do aborto, no sentido de criar um mecanismo legal que assegure a não punição das mulheres que recorram ao aborto, constitui uma manobra de mistificação e de confusionismo de última hora, que só o receio de perderem o referendo e uma grande dose de cinismo podem justificar.
1º - Esta proposta de alegada “despenalização” (como eles têm o despudor de dizer...) só aumenta a confusão sobre o que desejam os partidários do não, pois há propostas e sugestões de toda a ordem e feitio: há quem pretenda alterar a pena prevista para o aborto, em vez da pena de prisão, tendo uns falado em trabalho comunitário, outros em simples multa; há quem pretenda manter a pena mas dispensar a punição, seja por via de uma “suspensão” do processo penal, seja por via de uma cláusula automática de desculpabilização. E há obviamente quem não concorde com nenhuma destas “cedências” e defenda que o lugar das criminosas que “matam os filhos” é mesmo a prisão. Nessa enorme confusão há porém uma coisa que todos eles mantêm: a condenação do aborto como crime no Código Penal e das mulheres como criminosas.
2º - A ideia de um crime sem punição é totalmente insólita em termos de direito penal, sendo uma verdadeira contradição nos termos. Não faz nenhum sentido que certas condutas sejam qualificadas como crimes e depois garantir aos responsáveis a impunidade. Qualificar uma conduta como crime e prescindir antecipadamente de punir os “criminosos” traduzir-se-ia em subverter a própria razão de ser do direito penal. Só pode haver despenalização com descriminalização, como qualquer dicionário indica.
3º - A isenção de pena também não elimina nem o estigma da condenação penal do aborto nem a humilhação das denúncias e da investigação pelas autoridades judiciárias;
4º - Propor a isenção de pena sem verdadeira despenalização do aborto – como se propõe no referendo -- não altera o principal efeito da penalização, que é o aborto clandestino com todas as suas consequências: falta de aconselhamento na decisão de interromper a gravidez, decisões mais tardias e mais arriscadas, abortos em condições inseguras, lesões da saúde física e psíquica das mulheres, em certos a casos a morte.
5º- Ao defender agora a dispensa de punição (embora sem despenalização), os partidários do não entram em contradição com a principal razão da sua oposição à despenalização, que é a utilização da ameaça de punição penal como meio de dissuasão da decisão de abortar. Na verdade, prescindindo do medo da punição, como é que eles pretendem impedir as mulheres de abortar? Não se pode vir defender a impunidade do aborto e simultaneamente assentar a campanha na ideia de que o não é necessário para “salvar vidas”...
6º- Além de pouco séria, a proposta de última hora adoptada pelos adversários da despenalização é puramente oportunista. Há nove anos o não venceu, mas sem carácter vinculativo, pelo que os partidários do não tiveram todo este tempo para estudar, propor e aprovar a pretensa “terceira via” que agora precipitadamente propõem nas vésperas de novo referendo. Quem pode acreditar na sua sinceridade?
7º - O que está em causa no referendo é dizer sim ou não à despenalização limitada e condicionada do aborto. Como é próprio de todos os referendos, a pergunta é dicotómica. O sim significa revogar a punição penal do aborto, nos limites e nas condições indicadas na pergunta; o não significa o contrário, ou seja, implicitamente manter o que está. Não há lugar para “sim, mas” nem para “não, mas”, nem para uma terceira alternativa. De resto, se admitiam uma solução a meio caminho – dispensar a punição mas manter o crime –, os partidários do não tiveram toda a oportunidade de propor essa versão na formulação da pergunta referendária. Por que é que o não fizeram (antes aprovaram a formulação da pergunta) e só o fazem agora?
8º - A proposta agora lançada significa também uma subversão da lógica do referendo. Só a vitória do sim permite uma verdadeira despenalização do aborto (nos limites e condições indicados); e se o referendo for vinculativo, essa despenalização é obrigatória, sem tergiversações . Uma eventual vitória do “não” não assegura nem permite sequer a semidespenalização agora oportunisticamente defendida pelos partidários do não. Pois, se vencer o não – que significa rejeição da despenalização --, com que legitimidade é que a AR poderia aprovar medidas de isenção de punição contra a maioria dos votantes no referendo, sobretudo se o referendo for vinculativo?
Vital Moreira, Lisboa, 4 Fev. 2007
Exmo. Sr. Vital Moreira,
Antes do mais, obrigado pela sua exposição clara das contradições do não.
No ponto 5 do seu texto faz notar que: "Ao defender agora a dispensa de punição (...), os partidários do não entram em contradição com a principal razão da sua oposição à despenalização, que é a utilização da ameaça de punição penal como meio de dissuasão da decisão de abortar."
Estes desenvolvimentos recentes da posição do "não" demonstram claramente que o interesse essencial dos proponentes do "não" é a imposição de um princípio doutrinário católico (pessoa humana desde a concepção) através dos aparelhos legal e judicial do estado Português. A insensibilidade com que se pode propor uma pseudo-solução que agrava o problema do aborto clandestino mostra que o que realmente conta é a condenação simbólica de toda a infracção do indissimulável dogma. A ocorrência reiterada das infracções torna-se até uma vantagem.
Quanto a mim, já fui apodado de radical e de herético (apesar de não ser nem nunca ter sido católico nem cristão) por explorar o tema num artigo intitulado "O Código IVG ", que poderá encontrar no meu site. Que o radicalismo da questão seja inerente à própria natureza do monoteísmo em geral e do catolicismo em particular é uma evidência que, aparentemente, ainda choca e suscita imensos frissons em Portugal. É "retro", mas é real.
Presumo que seja mais fácil reagir a este problema de forma projectiva (acusando de intolerância quem faz notar a nudez do rei) do que encarar os próprios demónios.
Pôr o dedo na ferida não será politicamente aceitável em Portugal onde os brandos costumes são soberanos (só) à superfície, mas será legítimo deixar essa brandura insalubre persistir?
Obrigado pelo seu empenho nesta campanha.
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